segunda-feira, 5 de março de 2012

# Menina em stencil

Ela nunca se tinha visto assim - à noite, iluminada pela luz das estrelas, reflectida no manto de água da casa do avô. Foi dele que fugiu, sorrateiramente. A nitidez da lua e o canto das rãs guiaram-na até lá.
Mal chegou ao lago sentiu-se perplexa. A curiosidade prendeu-lhe os movimentos, julgava-se mais pequena.
A água revela mais do que a matéria. Lá, consegue ver a sua alma de gigante, recheada de fantasias, cores e sonhos. Por momentos, a menina desproporcional é invadida por emoções que já não cabem nas vestes de uma criança - e espalham-se no lago. Um som assombra o reflexo. A menina é surpreendida pela rã que seguira e desperta. O reflexo convida agora a brincar.


Marília Moura

domingo, 4 de março de 2012

Hoje são apenas os meus olhos


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.



Escrito por: Hugo Neves
4 de Março de 2012

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

TPC - Estado/ Sentimento EU SOU ...

Hoje acordei bem disposta, como todos os dias.
Propago-me através do ar, saltando de raio se sol em raio de sol, utilizando as nuvens como trampolim. Apenas uso as nuvens branquinhas e fofas que parecem algodão em rama. Nuvens levíssimas de uma brancura transparente, translúcida, em que apetece mergulhar. Não gosto daquelas escuras, carregadas, que ameaçam tempestade. Parecem estar sempre mal dispostas e são feias. Recuso-me a utilizá-las como trampolim, pois teria medo de afundar naquela cinzentomonotonia, qual algodão com bolor, deteriorado.
Mas tal como eu dizia - eu sou sinónimo de alegria, boa disposição, estabilidade, riqueza, riso, boa-vida,... - tenho tendência a dispersar-me no discurso e na vida, peço desculpa por isso, não sei se é da idade avançada (já lá vão uns séculozitos de existência), das armadilhas que me lançam quotidianamente (e às quais tenho que escapar ardilosamente), do mau olhado das invejosas das minhas antónimas ou do excessivo assédio das criaturas humanas que me colocaram no primeiro lugar no top das suas prioridades. De facto, eu sou o que os ricos, os pobres ou os remediados, os infelizes e os felizes, os políticos e os eleitores, os patrões e os proletários, os empregados e os desempregados, as crianças e os adultos, ...enfim, o que todos, mas todos mesmo, almejam, visam. Vejam uma entrevista de qualquer pessoa que é pessoa, ou seja, que é conhecida, que é alguém na sociedade, que é famosa ou com pretensões a sê-lo, escutem bem as respostas dadas por qualquer político, futebolista, zé-ninguém, maria-alguém, ... e atentem bem ao que pretendem na vida, qual é o seu grande objetivo. Querem-me! É a mim que querem, Eu sou o seu grande objetivo. Podem ter tudo na vida, mas não me têm a mim. Na totalidade, segundo dizem, nunca vão conseguir ter-me. Ainda não percebi se é porque sou difícil ou se é porque os seres humanos são difíceis e complicados. Eu acho-me tão fácil de alcançar. Encontro-me nos pequenos e nos grandes momentos da vida, estou disponível a qualquer hora do dia ou da noite, estou ao dispor gratuitamente, mas também posso ser comprada (embora não tenha preço!) e sou um camaleão on demand, pois revisto a forma que cada olhar possui de mim. Eu sou uma ideia, um conceito, uma filosofia; não tenho forma definida e sempre que me corporizo, faço-o nos moldes de quem me almeja, de quam anela por mim e arrisca tudo para me ter, para estar comigo nem que seja fugazmente. É talvez essa uma das razões que justificam a dificuldade em atingir-me: sou diferente de pessoa para pessoa, não há receita, não há trilho definido, não há tutorial, não há guião. Quem me quer, tem que arriscar e tem que me aceitar aos pedaços. Sou várias formas, sou vários caminhos, tenho vários cores. Sou, sinto-me e sentem-me diversa, múltipla, mas única no nome e na certeza que todos têm em possuir-me. Sou a FELICIDADE!


Rosa Lídia
29.12.2011

Nota: Com votos de Bom Ano para todos ... com muita, muita FELICIDADE, qualquer que seja(m) a(s) forma(s) que ela revista para vocês.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Exercício número 3

Odeio-o. Acabei de o ver e já o odeio. Quem julga ele que é a olhá-la assim com olhos de carneiro mal morto, como se ela fosse um pedaço de carne. Que raiva! É bonita, sim, muito bonita, mas aquele idiota não vê que ela não é para o seu bico; não se toca; não vê aquele olhar puro, aquela pele sedosa e alva, aquele porte altivo e elegante. Não vê que nada ali se coaduna com a grosseria e a lascívia que o caracterizam!

Conhecia-lhe tão bem os gestos lentos e premeditados de quem detetou uma vítima e avança sobre ela sorrateiramente, descortinava o olhar malicioso que ele sabia estar por detrás daqueles óculos escuros usados para esconder as intenções que os seus olhos a descoberto deixariam revelar, adivinhava a satisfação que aquele jogo do gato e do rato lhe estava a dar: a sensação de ter encontrado a presa ideal, de arquitetar a armadilha de forma bem ardilosa e aguardar sem pressas que a presa morda o isco; sabia tão bem como era essa espera, conhecia tão bem as sensações de euforia que causava esse jogo solitário de caçador. Por isso, odiava-o. Odiava-o com todas as foças do seu ser. Ele também já fora assim. Também já olhara um rosto feminino com sofreguidão, tateara com o olhar guloso as formas de uma mulher no autocarro, roçara acidentalmente (e tão intencionalmente!) a perna de uma mulher a pretexto de uma paragem brusca do autocarro  ou da queda de uma folha de jornal. Também já o fizera, é verdade!

Mas, agora, quem ali estava ao seu lado, no autocarro, a ser alvo da volúpia desregrada daquele matreiro, era a sua filha. A sua filha. E a sua filha era sagrada, sagrada. Por isso, tinha vontade de esmagar aquele ser desprezível, nojento, que estava a conspurcar a inocência e ingenuidade da sua cria.

Pauloexmarialva

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

“…Larguem tudo novamente, lancem-se pelos caminhos”

                Quero ir lá para trás. Para um tempo de aventura e ilusão. Para um tempo que o inebriar dos espíritos e as mentes libertas compunham as sinfonias da tarde. Quero ir até onde as forças me derem para gritar… Não, não quero estes bichos de merda. Que à dignidade humana trazem desgraça e solidão. Chega de promessas vãs. Deixai que me renove de forças e utopia e irei pelas pradarias, montado em cavalo de esperança, anunciando novas vidas.
Ficaste de bolsos vazios? Esvazia o dos outros. O daqueles que te forçaram a penúria. De que te vale o voto que tens na mão…é arma de pólvora seca. Melhor será acreditares em ti e em ti, qual pedra lançada à água, esperar que as ondas se multipliquem e contagiem outros tis, em exercícios de solidariedade e amor.
                Temos de “… subverter o quotidiano”. À norma, responder com o novo. À norma, retorquir com o arrancar das palas. À norma…subverter, subverter, …deixando que os esbirros se afundem no lodo da ignomínia. Procuraremos novos cisnes e que outros cantos nos levem à opulência superior do Ser, esvaziando o ter.
                Assobiaremos a nossa raiva, até que as cabeças dos pandilhas sejam armas de arremesso, pois de útil mais nada têm. Num tempo de passagem que é permanente, exige de ti a vida, ignorando os produtores de palavras e feitos ignóbeis. Esquece a intempérie do planeta troika que nos impinge seres feios e maus.
                Dá ao fruto o sabor da esperança e amor profundo dos corpos adolescentes, deixando que em liberdade o género se confunda, expirando e suspirando por novos caminhos. Que interessa agora o sonho antigo? Em nome dele fizemos desgraça.  
                Não receies perder-te nos labirintos…pois diferente te sentirás. Os que te deixaram, os do medo esses sim … destrói-os … são já caminho sem saída. São princípio de precipício, fim de linha.
                Deixa que outras energias te avassalem o corpo e parte para a (re)construção da tua utopia, “…largando tudo novamente, lançando-te pelos caminhos” do arco-íris.

Cristóvão Sá Pimenta
03Nov2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A conferência

              Em dia de temporal desabrido, o céu abrindo as águas, saí para sítio certo e edifício incógnito. Levava-me o sexto sentido. Não sei o que é, apesar das minhas amigas afirmarem ser a intuição… feminina. Intuição, esquisito, e os machos não têm? Ou isso é coisa de sentir e não ter? Ou ser?
Reflectindo durante a viagem, com o limpa pára-brisas no máximo e luzes em pleno, até piscando, veio-me uma certa euforia pelo retomar dos meus projectos. Interrompidos pelas preocupações de mãe pelos seus meninos. Eles crescem…mas são sempre meninos. Há tempos fiquei perplexa pela preocupação de um ancião por sua filha, entre os cinquenta e os sessenta, ao que parece bem viva e ondulante. Tinha-se apaixonado, a tal ponto de se estar a preparar para o divórcio. Aconselhei-o. Não se preocupe, aceite as suas escolhas. Diga-lhe, porém, para viver a paixão de forma breve, se não adoece. Sim, ela não está em idade de ficar doente por coisas dessas. Haverá momentos de volúpia superior que merecem ser vividos sem a necessidade do ferrete.
Nos interstícios da intempérie encontrei a escola. Senti meu coração a rejubilar. Ao passar o portão olhei para o relógio. Vinha a destempo, por adianto. Percorri lentamente os corredores de lay-out frio e minimalista. Minimalista não por acaso, é claro. Não poderia haver algo que desviasse a objectividade do Saber. Assusta-me esta permanente procura do rigor, Não será tanto a questão do rigor mas muito mais o constante e firme apelo à nudez de emoções na produção da ciência. Fere-me este modus operandi. Sou uma piegas por natureza.
Já no secretariado da conferência passo os olhos pela composição dos painéis atentando às comunicações que iriam ser apresentadas. Empolguei-me quando assestei o meu olhar no seguinte título “A mão que dá a rosa também fica perfumada”. Que beleza! Título poético mas compreensível. Fiz questão de assistir à apresentação. Fiquei desde logo rendida, não só pelo título, como pela simplicidade e síntese do trabalho. Não esquecendo, má fortuna minha, a jovem figura da autora levando-me lá para trás, recordando os tempos da moçoila que já fui. Tal deslumbramento não me inibiu da crítica, quase pecando pela traição às emoções que defendo e gosto de ler vertidas em herméticos textos de produção científica.
 Acabou o dia. Ficou-me uma certa tristeza. Não consegui partilhar empatias várias que se manifestaram em breves sorrisos e trocas de olhares…

Vénus Liberta

domingo, 30 de outubro de 2011

Na cadeira descobrindo a multidão

como é triste vê-lo,
sozinho, a arrastar-se na cadeira
vê-lo triste, na cadeira,
a arrastar-se sozinho
na cadeira, sozinho,
é triste vê-lo a arrastar-se
sozinho na cadeira a arrastar-se,
como é triste vê-lo

e um grito irrompe pulando
na cadeira que a multidão aperta
apertado na cadeira,
no meio da multidão, irrompe num grito
ai, ai, deixai de o apertar gritando
pulo perdido na multidão e cadeira no ar
no ar voando seu grito de Ipiranga,
em cima da cadeira à cabeça da multidão
e nas curvas que o derretem
sente Vida…mas dêem-lhe espaço

Cristóvão Sá Pimenta
Re-escrito
domingo, 30 de Outubro de 2011